Livro didático em nova matéria ensinada por ex-soldados na Rússia e em territórios ocupados da Ucrânia contém narrativas falsas.
A tensão entre os países aumentou desde que a Rússia anunciou a nova matéria militar a ser introduzida nas escolas. A decisão foi vista como mais um passo em direção a um possível conflito armado entre as nações.
O confronto de ideais sobre segurança e defesa da pátria está evidente nessa atitude da Rússia. A medida pode acender uma nova guerra fria entre os países do leste europeu.
A manipulação do discurso sobre a Guerra
👉🏾 A BBC obteve acesso a uma cópia do recente manual didático sobre o assunto – e analisou suas 441 páginas iniciais. O material inclui narrativas enganosas do Kremlin sobre o conflito na Ucrânia e encoraja os alunos a se juntarem ao Exército.
A disciplina ‘Princípios de Segurança e Defesa Nacional’ será ministrada semanalmente, substituindo uma matéria de longa data conhecida como ‘Princípios de uma vida protegida’ em todas as instituições de ensino do país, incluindo as cinco regiões da Ucrânia ocupadas pela Rússia. A previsão é que ex-militares atuem como professores nesta nova disciplina.
Russos formados em pedagogia que retornam da batalha na Ucrânia estão recebendo atualmente treinamentos gratuitos para se tornarem educadores.
‘Estamos aprimorando o módulo inicial de treinamento militar para torná-lo mais atraente e contemporâneo’, afirmou Sergei Kravtsov, ministro da Educação russo.
O primeiro livro didático da nova disciplina, O Exército russo em Defesa da Pátria, foi lançado pela ‘Enlightenment’, a principal editora educacional russa.
A editora organizou uma sessão de apresentação online para professores em janeiro, na qual a BBC participou.
‘Caros colegas, todos nós compreendemos a importância de apresentar informações aos nossos estudantes a partir da perspectiva do nosso Estado [Rússia]’, afirmou Olga Plechova, representante da editora.
‘Não podemos fornecer pontos de vista alternativos aos alunos. Assim, este livro os auxiliará a responder às indagações dos jovens e fornecer uma interpretação precisa de determinados eventos.’ Para narrar de forma precisa os eventos, a editora contou com a colaboração de um representante do Ministério da Defesa, o tenente-general Rafael Timoshev, e do editor-chefe adjunto do ‘jornal russo’ do Kremlin, Igor Chernyak, coautores do manual didático.
O impacto das falsas narrativas de guerra
A BBC teve acesso a uma cópia do O Exército Russo em Defesa da Pátria. As páginas do livro estão repletas de relatos que descrevem as ‘façanhas heroicas dos soldados russos’, desde o século 13 até os dias atuais.
Os autores do livro enaltecem o ditador soviético Joseph Stalin, celebram as conquistas do povo soviético durante a ‘Grande Guerra Patriótica’ [termo usado pelos russos para se referir à Segunda Guerra Mundial] e aplaudem o papel dos militares russos na ‘reunificação da Crimeia com a Rússia‘ [termo utilizado pelo Kremlin para descrever a ocupação da península ucraniana].
Em uma seção específica, o livro didático aborda a suposta ‘operação militar especial na Ucrânia‘ [como o Kremlin se refere à invasão em larga escala da Ucrânia].
‘Quando houve um golpe de Estado em Kiev em 2014, o novo governo iniciou uma repressão a tudo o que fosse russo.
Livros russos foram queimados, monumentos destruídos, canções russas e o próprio idioma russo proibidos’, narram falsamente os autores.
‘Coquetéis de ‘sangue russo’ eram servidos em restaurantes.’ E a série de alegações falsas continua: ‘Cidades nas regiões de Luhansk e Donetsk, onde havia dissidência contra tais políticas, foram alvejadas por explosivos e foguetes nazistas’.
Os responsáveis pelo manual também afirmam que ‘a Ucrânia e a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) planejavam iniciar a guerra’.
De acordo com o texto, ‘em 19 de fevereiro de 2022, na conferência de Munique, o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, ameaçou a Rússia, afirmando que a Ucrânia pretendia adquirir armas nucleares.
Kiev planejava recuperar o controle de Donbas e capturar a Crimeia, seguida pela presença das tropas da OTAN’.
A narrativa prossegue, alegando que ‘um grande contingente de tropas e veículos blindados ucranianos estava estacionado nas fronteiras’.
O analista político ucraniano Volodymyr Fesenko caracteriza esse conteúdo como ‘total desinformação e falsidade’. Ele recorda ter assistido ao discurso de Zelensky em Munique, no qual o presidente ucraniano mencionou o Memorando de Budapeste.
Este acordo, firmado em 1994, estabelecia que a Ucrânia entregaria suas armas nucleares em troca de garantias de segurança da Rússia e de outros países.
Essas garantias foram violadas quando a Rússia ocupou a Crimeia em 2014. Segundo Fesenko, ao contrário do que o livro alega, Zelensky destacou essa violação em meio às crescentes preocupações sobre a mobilização das forças armadas russas nas fronteiras da Ucrânia desde o final de 2021.
A Rússia lançou um ataque em grande escala à Ucrânia logo após a conferência de Munique. Em seguida, o livro falsamente afirma que a cidade ucraniana de Mariupol, bombardeada pelas forças russas, foi arrasada durante enfrentamentos com ‘nazistas’ e ‘mercenários estrangeiros’.
Especialistas consultados pela BBC notam como o manual enfatiza que a Rússia prioriza a segurança dos civis ucranianos e minimiza a devastação. O texto argumenta que ‘a Ucrânia frequentemente ataca infraestruturas civis’, ao passo que assegura que ‘a Rússia atua com integridade’.
‘Todos se lembram da tragédia em Bucha, na região de Kiev, onde dezenas de civis ucranianos foram mortos por russos, e mulheres teriam sido violentadas’, relata Fesenko.
‘Há dezenas e dezenas de casos assim. O prédio da Universidade Nacional de Kharkiv, onde trabalhei durante 20 anos, foi destruído no primeiro dia do ataque russo à cidade.
A escola frequentada por minhas filhas também sofreu bombardeios. São edificações civis brutalmente destruídas pela Rússia.’
A propagação da guerra
Outra seção de O Exército Russo em Defesa da Pátria começa com um panorama detalhado da estrutura das Forças Armadas da Rússia.
À medida que o conteúdo avança, defende cada vez mais o alistamento de maiores de 18 anos nas forças armadas. O livro descreve o processo, incluindo a documentação necessária, o tamanho da foto, um link para o formulário de inscrição e endereços próximos para o alistamento.
Também destaca os benefícios, como assistência médica e seguro gratuitos, salário atrativo e três refeições diárias. Além disso, lista várias restrições caso o recruta não compareça ao local de alistamento, incluindo a recusa de crédito e a proibição de conduzir veículos automotores ou registrar propriedades.
Os jovens dos territórios da Ucrânia ocupados, como a Crimeia e Donbas, podem ser atraídos por esses incentivos econômicos, alerta Olha Skrypnyk, líder do Crimean Human Rights Group.
‘Além da propaganda agressiva direcionada às crianças nos territórios ocupados da Ucrânia nos últimos dez anos, não há oportunidades de emprego por lá.
Onde mais eles conseguiriam receber esse salário?’, questiona ela.
Skrypnyk acrescenta que o novo livro irá contribuir para a mobilização de reservistas na Rússia e nas regiões ocupadas pelo país.
‘Portanto, essas crianças vão para a guerra e perdem a vida.’
Em dois anos de conflito, a Rússia perdeu pelo menos 1.488 soldados com menos de 20 anos.
Esses números dizem respeito apenas aos óbitos confirmados pelo serviço de notícias em russo da BBC com base nos dados divulgados. Gráficos: Angelina Korba
Fonte: © G1 – Globo Mundo